FIM DA 2ª TEMPORADA

29. DE VOLTA À ROTINA

     Caliel e Checarion partiram em um raio de luz para o Céu.
    - Volto logo, minha querida. Muito obrigado por tudo. Dessa vez, foste tu meu anjo da guarda – declarou Caliel à sua protegida, antes de ir embora.
     Lágrimas gorduchas escorreram pelas bochechas da doutora, que não conseguiu dizer nada além de um simples...
     - Tchau!
   Cansada e um tanto abalada, Margô logo em seguida desabou no sofá ao lado dos companheiros da última aventura, que já dormiam amontoados. Ela também já fechava os olhos, mas foi interrompida pela curiosidade alheia.
    - Não, não, não! Nada de dormir! De jeito nenhum! – chegou berrando Celeste – Quero saber tudo! Tudo, tudo, tudo!
     - Agora não, Celeste!
     - Agora, sim, senhora!
   A ruiva retrucaria mais uma vez. Porém, além de Celeste, Beterraba e Sorondo também já estavam a postos em frente ao sofá. Era melhor ceder.
    - Sei que precisa descansar, doutora. Mas, passamos dias de imensa preocupação. Por favor, nos conte o que vocês passaram. Depois, poderá dormir sossegada – pediu o mordomo do laboratório.
     - Tá bem.
   Cada um puxou uma cadeira e sentou-se em torno de Margô, que passou as próximas duas horas narrando os detalhes da aventura e respondendo a todas as dúvidas dos amigos. Depois do falatório, Sorondo serviu um chá de camomila à doutora, ajudou-a a subir as escadas e chegar até a cama.
     - Bons sonhos, Margô.
    Não houve tempo de a doutora responder. O sono foi mais rápido e fez companhia a ela pelas 24 horas seguintes.
     Ao acordar e descer as escadas, a chefe do laboratório deparou-se com todos agitados, trabalhando e conversando pelos cotovelos. Ela não quis interromper a empolgação da equipe e, por alguns minutos, ficou parada, sem descer os degraus.
    - Por que meu anjo da guarda não aparece como fez o Caliel com a Margô? – Beterraba soltou a pergunta no ar.
     - Hahaha! E eu? Que nem sabia que a gente tinha anjo da guarda! – respondeu Baldo.
     - Depois do que passamos debaixo da terra, acredito que cada um de nós tem é um exército de guarda, não um anjo só – brincou Zé.
    - É possível, amigo. Não sei o que seria da gente se o Checarion não tivesse aparecido na hora H! – completou Baldo.
    - Para ser honesta, eu também não sei. O importante é que permanecemos unidos e completamos a missão que nos foi designada. Estou orgulhosa de vocês, mais uma vez – falou Margô, para surpresa dos demais, que não haviam percebido a presença dela. A doutora, além de uma ótima equipe, sabia que contava naquele laboratório com excelentes amigos, amigos para toda a vida.
     - Precisamos agora dedicar força total a algumas encomendas que estão atrasadas. Afinal, trabalhamos desfalcados nesses dias em que vocês estiveram nas profundezas do mundo! – lembrou Beterraba.
     - Você tem razão, Betê. O dever nos chama! – empolgou-se a doutora, que desceu as escadas correndo para ajudar os companheiros.
     No último degrau, o salto do sapato vermelho de Margô arrebentou. A ruiva cambaleou três passos à frente, girou 180 graus, tropeçou no pé de uma das cadeiras do laboratório, patinou no piso que Sorondo havia encerado no dia anterior, rodopiou mais uma vez no próprio eixo e estava prestes a estatelar de cara numa imensa estante de livros (que provavelmente cairia depois sobre ela), quando, zup!, a barra do vestido da doutora ficou presa na quina de uma das mesas. A roupa esticou, não arrebentou, e Margô desacelerou até parar de pé, sã e salva, no meio do laboratório.
     - Margô!!!
     - Você tá bem?
     - Se machucou?
     - Que perigo!
    A ruiva respirou fundo, aliviada. O coração batia mais rápido que tamborim de escola de samba.
    - Uau! Estou bem. Mas, essa foi por pouco! – resumiu a doutora.
    O grupo foi acudir Margô e a fez sentar. Sorondo correu à cozinha apanhar um copo d’água com açúcar.
    Enquanto a doutora bebericava uns goles, o sábio mordomo observou.
    - Certamente seu anjo Caliel também já voltou ao trabalho, Margô.

28. EXPLICAÇÕES

     - Peço-te desculpas, irmão. Agi precipitadamente.
    Foi assim que Checarion abriu diálogo com Caliel, assim que adentrou o laboratório. O ser celeste chegou ao local minutos depois de Margô e os outros aventureiros retornarem do Inferno.
      - Uau! Quem é esse? – quis saber Beterraba.
      - Pelas asas, outro anjo, né? – chutou Celeste.
   - Na verdade, senhoritas, sou um arcanjo. Minhas desculpas por chegar assim tão de repente, sem apresentações formais – respondeu Checarion, que logo em seguida explicou a todos quem era, de onde vinha e o que fazia por lá.
     - Fiz questão de rever Caliel antes de retornar ao Paraíso. Em verdade, além de minhas desculpas, vim convidar meu irmão a voltar comigo para lá – complementou o arcanjo.
     Caliel sorriu satisfeito com o convite. Porém, guardava uma dúvida fundamental.
     - O que fez mudares de opinião sobre mim? Compreendi que descobriste adulteração em meu relatório. Contudo, como se deu tal averiguação?
     Checarion fechou os olhos por um instante, respirou profundo e tornou a falar.
    - Verifiquei antigos relatórios teus. Analisei teu método de narrar os fatos, as formas que usas as palavras, a maneira com que te expressas. Assim, constatei que o relatório responsável por tua punição estava diferente dos demais: era um tanto breve, pobre e truncado, incompatível com as minúcias com que tu descrevias até as missões mais triviais.
     O anjo da guarda ainda não estava convencido. Por isso, Checarion continuou a explicação.
    - Também analisei o relato de outros anjos da guarda cujas missões da época de alguma forma se relacionaram com as tuas. Foi então que encontrei a narrativa do anjo Bariel, protetor de um humano chamado Dome Vorpa.
     - Já ouvi esse nome – comentou Baldo.
     - Sim! – exclamou Margô.
    - É o bruxo que serve o Senhor das Trevas – reconheceu Caliel – Foi ele que capturou a alma de meu protegido.
     Checarion retomou a palavra.
     - Exato. Apesar de ter a alma tão corrompida a ponto de ganhar livre acesso ao Inferno mesmo antes de falecer, Dome Vorpa é um humano e, como tal, é guardado por um anjo. O relato de Bariel conta detalhadamente como o protegido dele atuou para adulterar teu relatório, Caliel; intento que levou à frente mesmo depois dos insistentes alertas e sinais de nosso irmão.
     - Bariel é nobre. Tenho certeza de que fez tudo o que estava em seu alcance – frisou Caliel.
    - Conta! Conta! Como foi que esse cara teve acesso ao relatório de um anjo da guarda? – afobou-se Celeste, ansiosa por saber toda história.
     Mais uma vez, Checarion falou.
     - Segundo o relatório de Bariel, o bico de pena que tu usas para escrever, Caliel, foi trocado por Dome Vorpa por um instrumento idêntico, porém imerso em magia negra de persuasão. Tal artimanha ocorreu em uma de tuas incursões ao Inferno, local em que teus poderes -- e os de qualquer outro ser celestial de menor hierarquia – ficam reduzidos.
     Caliel retrucou.
     - De que forma? Tomei todos os cuidados para não ser descoberto. Agi às escondidas!
   - Por causa de tua natureza de vigilante, tu estavas tão preocupado em resgatar Rui Rico que não protegeu a si mesmo de acordo, apesar de crer tê-lo feito. Ao escreveres teu relatório, a pena amaldiçoada confundiu teu raciocínio, escreveu trechos sem que tu percebesses e suprimiu outros que tu já registraras.
    - Não é possível! – espantou-se o anjo da guarda.
  - Assim que a investigação foi reaberta, encontramos o apetrecho infernal entre teus pertences – complementou o arcanjo – Eis o perigo de circular pelas galerias das trevas.
   Todos ficaram calados por um bom tempo. Margô e os amigos de laboratório, humanos que são, não sabiam o que dizer àqueles dois seres tão superiores. Caliel perguntava-se em segredo em que momento e como fora ludibriado em perceber...
     Coube a Checarion quebrar o silêncio.
      - Vamos embora agora?

27. À CASA TORNA

     A musiquinha do Plantão da Globo começou a tocar de repente. Todos pararam de fazer o que estavam fazendo e foram para frente da TV.     
    - Em uma incrível virada, a presidente Tina Dupep foi reeleita no primeiro turno com 54% dos votos. A candidata já estava arrumando as trouxas para ir embora do Palácio do Planalto quando recebeu a notícia. A arrancada da vitória foi uma surpresa nacional. Afinal, todas as pesquisas de boca de urna indicavam que o candidato Rui Rico seria eleito com 99% dos votos! Depois de todas as urnas apuradas, Rico terminou na última colocação, com 0,00009%. Parece que ele teve só o voto da mãe, da esposa e dele mesmo! - anunciou a jornalista.
    Assim que chegou ao laboratório, Margô entregou a garrafa com a alma do político para Caliel. O anjo – que já estava plenamente curado da queda que havia sofrido --, de imediato, retirou a rolha que lacrava boca do objeto.
     Feito um gênio quando sai da lâmpada, a alma de Rui Rico evaporou para fora da garrafa, reagrupou-se em pleno ar, deu um rodopio, beijou a testa de Margô, a bochecha de Caliel e voou ao encontro de seu corpo.
     Rui Rico, ou melhor, o corpo de Rui Rico, estava sentado num grande sofá, em frente à TV, na sala do comitê de sua campanha. Em volta, muita gente com bandeiras, buzinas e cornetas preparava-se para sair aos gritos às ruas e fazer a festa. Todos tomaram um baque gigantesco ao assistirem ao resultado da eleição.
     Em meio ao choque, nenhum deles percebeu o que ocorria com Rico. O ser que estava sorridente e com um brilho estranho no olhar sentado no sofá de repente sentiu um tranco, como se estivesse engolido algo que não lhe caísse bem no estômago.
     Logo em seguida, os olhos de Rui Rico reviraram, seu coração acelerou, os dedos das mãos entortaram-se, seu rosto ficou completamente vermelho e ele teve um ligeiro desmaio. Ao voltar a si, não havia mais sorriso no rosto – mas, sua alma estava de volta à casa.
     - Onde estou? – perguntou o político, sem receber resposta.

26. REVÉS

     -- Quem é você? – gritou Margô, assim que foi surpreendida pelo ser obtuso.
     A doutora não sabe, mas você, leitor atento, já desvendou a identidade do camarada. O sujeito de capuz negro, pele muito branca e barba muito preta não era outro senão aquele homem do capítulo 8 que capturou a alma de Rui Rico para Lúcifer. Não se lembra? Dá uma olhadinha lá.
    Pois no Inferno este indivíduo repulsivo atendia pela alcunha de Dome Vorpa, o puxa-saco número um do Capeta.
     -- Esta alma é minha! – repetiu novamente – Minha!
     Em seguida, ele se virou para o Senhor das Trevas e continuou o palavrório.
     -- Já que meu mestre abriu mão do espírito do futuro presidente do Brasil, eu ficarei com ele e iniciarei a dominação mundial por este país miserável!
     Empolgado, Dome Vorpa dessa vez voltou-se para o amontoado de capetas da galeria e gritou, a plenos pulmões:
     -- Viva o Inferno!
     Silêncio. O barbudo fez biquinho, encolheu os ombros, mas não se sentiu constrangido o suficiente. Mais uma vez ele berrou, dessa vez ainda mais alto:
     -- VIVA O INFERNO!!!
     Ele esperava que todos gritassem um “Vivaaaaa!” de volta. Porém, de novo, o silêncio foi geral. Mesmo os capetinhas mais infernais (com o perdão do trocadinho) ficaram quietos.
    Na verdade, o que se passava era que Dome Vorpa, como todo puxa-saco, não era muito bem quisto pelos colegas. Era tão grande sua vontade de agradar Lúcifer, que ele extrapolava os limites da dignidade. Como vocês sabem, por mais deteriorados que sejam os seres, todas as comunidades estabelecem alguns códigos de conduta para que o convívio seja possível.
     No Inferno, tudo era aceito, menos lamber as botas do chefe.
     Afinal, um dos desejos dum capeta que se preza é tomar o poder.
     -- Dome Vorpa – chamou o Diabo-mor – Venha cá.
    O homem estalou os olhos de tal forma que eles quase caíram das órbitas. A adrenalina começou a correr solto por suas veias, seu coração passou a bater mais alto que o Olodum e as pernas penderam para os lados, de tão bambas. Sabia que iria sofrer uma punição severa por sua atitude destemperada. Só agora tomava consciência do que havia feito.
     -- Dê a garrafa para essa aí do cabelo vermelho antes que eu mande arrancar um a um os pelos de sua barba. Com um canivete desamolado.
     Margô estendeu a mão e finalmente recebeu o tesouro de sua jornada.
    Lúcifer, de ombros caídos, inspirou profundo e, logo em seguida, liberou um bafo quente de desamparo pelas narinas. Dois capetinhas distraídos não desviaram a tempo e tiveram as caudas queimadas.
    O chefão das Trevas não contava com a intervenção direta de um agente do Divino em seu território – e, sem chances de resistir, admitiu a derrota e o fim de seus planos de dominação do universo. Pelo menos por enquanto.
     -- Vamos para casa? – perguntou a doutora ruiva aos amigos.
    -- Putz... Que bom que resolvemos tudo. Mas, só de pensar no trabalho que vai dar este caminho de volta já me dá preguiça! – desabafou Baldo.
    -- Não se preocupem, conheço um atalho – interviu Checarion – Cuida-te, Lúcifer. E, lembra-te: os Céus para sempre hão de vigiar-te.
    Ato contínuo, o arcanjo bateu palmas. De suas mãos, infinitos raios de luz partiram em todas as direções, rebatendo nas paredes das galerias do Inferno e cegando a todos.
     Quando voltaram a abrir os olhos, Margô, Zé, Baldo e Rimo estavam no laboratório – em frente a Caliel e os demais amigos, todos estupefatos.

25. TUDO PASSA

     Séculos atrás, desde que fora promovido e abandonara as ruas para se tornar o responsável por anotar e arquivar a rotina dos anjos da guarda, Checarion assimilou com o tempo um novo hábito pertinente à sua nova função: checava, rechecava e checava novamente todas as suas ações.
     Foi o que fez com o caso de Caliel.
    Mesmo com a sentença do anjo da guarda já definida e aplicada, algo incomodava Checarion. Não sabia bem o quê; uma pulga atrás da orelha, que também morde os mais elevados seres. Um dia, depois do longo expediente de bater e rebater carimbos sobre infindáveis relatórios, o arcanjo retirou dos arquivos a papelada sobre Caliel.
     -- Após revisar várias vezes o caso, ficou claro para mim que eu havia cometido um erro. Um inocente não poderia ser punido por causa de minha interpretação equivocada – explicou Checarion, em alto e bom som, a Margô, Zé, Baldo, Rimo, o Diabo e toda população do Inferno.
     Ele continuou com a palavra.
     -- Obviamente, Caliel infringiu a Lei 555/88, uma das mais importantes a regular a conduta dos anjos da guarda. Porém, não se pode analisar os fatos somente pela palavra crua da lei...
     Lúcifer interrompeu.
     -- Você não é advogado, promotor ou juiz! Que baboseira é esta que está falando?
     -- Tens razão. Não sou nada disso. Porém, sou justo. E a Justiça está acima da Lei.
     Checarion avançou mais um bocado e parou frente a frente ao Capetão.
     -- Além disso, descobri que o relatório de Caliel havia sido adulterado!
     -- Como assim? – quis saber Margô.
     -- Que relatório? – questionou Zé.
     -- Pare de falar asneiras, infeliz! – gritou Lúcifer.
     O arcanjo revisor voltou a falar, mesmo assim.
     -- Respeita os asnos, Anjo Decaído. Estes seres esforçados não merecem ser diminuídos pelo veneno de tua língua. Em resposta à pergunta do simpático rapaz de bigode, apresento-lhes um trecho que havia sido removido do relatório do anjo da guarda.
     No mesmo instante, Checarion desenrolou um longo pergaminho, escrito de cima a baixo com as belas e humanamente ininteligíveis letras do alfabeto do Éden. Aos poucos, no entanto, as palavras ganharam vida, saltaram do tecido e começaram a rodopiar no ar, combinando-se umas as outras. Ao ponto de se tornarem outra coisa: a holografia de Caliel.
     O avatar do anjo da guarda pôs-se a falar.
     -- Sábios senhores, anjos e arcanjos superiores. Fui o primeiro anjo da guarda a violar a Lei 555/88, que nos impede de tocar em território infernal. Tenho ciência da indisciplina de meu ato e sei que serei punido com rigor por tal. Ainda assim, eu não poderia agir diferente. Quando nosso Pai Superior nos criou, incutiu na natureza de cada anjo da guarda o amor incondicional pelos humanos e a necessidade do cumprimento do dever de protegê-los, sob qualquer circunstância, não importa a ameaça. Desta forma, foi inevitável a mim descer ao Inferno e tentar o resgate da alma de meu protegido. Não consegui. Os poderes de Lúcifer e seus asseclas eram muito superiores aos meus. Porém, fiz minha parte e cumpri meu dever. Peço perdão pela indisciplina e pelo fracasso.
     A holografia, de repente, desapareceu, as letras se separaram mais uma vez e retornaram ao pergaminho. Lúcifer puxou a palavra para si.
    -- Este idiota acaba de confessar o próprio crime! Hahahaha! Ele não merecia simplesmente ter sido banido. Era para ele ter sido mandado aqui para nós! Como dizem os humanos nojentos: de boas intenções, o Inferno está cheio. Hahahaha! Detesto imbecis, iria preparar uma sessão de tortura especial para ele.
    -- Cala-te – ordenou Checarion – A Assembleia Celestial acatou parecer dos sábios e juristas do Paraíso e decidiu por extinguir a Lei 555/88. Assim, Caliel está autorizado a retornar ao nosso convívio e retomar suas funções.
     Margô encheu os olhos de lágrimas. Baldo bateu palmas de felicidade. Rimo sacudiu as penas da cauda, demonstrando sua alegria, e mesmo Zé esboçou um ligeiro sorriso por baixo do bigode.
     -- Vocês estão loucos!!!??? – berrou mais uma vez o Mestre do Mal – Este Caliel é um irresponsável! Um desobediente! Um fanfarrão! Um baderneiro! Um desertor! Um traidor! Como vocês podem perdoá-lo?
    -- Quem és tu para nomear os outros como traidor? – questionou calmamente Checarion – Não há perdão a quem sequer errou. Não é necessário. Em verdade, Caliel revelou que equivocados estávamos todos nós.
     -- Como assim??? – afobou-se Lúcifer.
     -- Nenhuma lei pode estar acima da maior de todas as leis.
     -- E que diabo de lei é essa??? – perguntou o Capetão.
     Checarion fechou os olhos e respondeu.
     -- A Lei da Natureza.
     Todos ficaram atônitos. Depois de uma ligeira pausa, o arcanjo retomou a argumentação.
    -- Não poderíamos punir Caliel por ele ser exatamente aquilo que fora feito para ser. Fazer isso seria caminhar em sentido contrário à vontade divina.
     -- Mas, eu fui punido! Nós todos do Inferno fomos!!! Chama isso de Justiça??? – gritou um amargurado Lúcifer.
     -- Tu não nasceste mal. Tu escolheste o mal.
     O Chefão do Inferno finalmente ficou mudo.
    -- Agora, por favor, entregue a garrafa com a alma de Rui Rico à distinta senhora ruiva, para que possamos ir embora – mandou Checarion.
      Sem escolhas, Lúcifer cumpriu a ordem e esticou o receptáculo às mãos de Margô.
     Contudo, instantes antes de ela apanhar a garrafa, algo muito veloz avançou sobre a doutora e tomou o objeto para si.
       -- Esta alma é minha! – disse um sujeito de capuz negro, pele muito branca e barba muito preta -- com os dentes todos à mostra.

24. CONFRONTO

     Quando o capeta te chama para briga, o que você faz?
     Eu, provavelmente, correria para longe, o mais rápido possível. Zé, no entanto, que tem vários parafusos soltos na cabeça e não tem medo de cara feia, não pensou duas vezes e partiu de punho fechado em direção ao Diabo.
     O bigodudo só não contava com uma coisa... O Mestre do Mal, apesar de não ser nenhum faixa preta em jiu jitsu, aprendeu alguns golpes vendo MMA na TV e contra-atacou. Quando Zé disparou um cruzado de direita, o capetão abaixou-se e aplicou um gancho de esquerda direto no queixo do pobre, que desabou no chão na mesma hora. Nocaute.
     - Zé! – gritou Margô, sem que o amigo pudesse ouvi-la.
     Dali para frente ficou claro que a batalha não deveria ser travada por meio da força.
     - Você tem algum outro plano, doutora? – questionou Baldo.
     A ruiva foi sincera.
     - Desta vez, não!
     - Meus Deus, e agora, o que faremos? – pensou alto Baldo.
     Lúcifer ouviu o clamor do outro e mais uma vez não segurou a gargalhada.
     - Tolo! Aqui embaixo Deus não tem poder algum! Hahahahahahaha! – completou o diabo, mostrando os dentes afiados.
     Na verdade, Deus apita em todos os lugares. O Inferno não é o reino do capeta, inatingível pelo divino, como Lúcifer julgava. O Inferno, na verdade, funciona mais como um presídio, onde Deus antigamente trancou os anjos rebeldes que tentaram tomar o poder no Céu – e no qual ainda enjaula os que descumprem a Lei. E, como em todo presídio, Deus tinha por lá seus agentes e vigilantes infiltrados.
    - Caro Príncipe das Trevas, já está na hora de tua festa acabar – ouviu-se por trás das legiões de capetinhas armados – Por favor, entrega a garrafa que tens em mãos para a senhorita. Caso contrário...
      Louco de fúria, Lúcifer se esticou para avistar quem proclamava tais absurdos desafiadores.
     - Quem ousa falar desta maneira comigo?!!! – berrou o Diabo, tão alto e repleto de ódio que deixou surdo (verdadeiramente surdo) um pobre capetinha que estava ao seu lado.
    O sujeito, então, avançou e revelou-se. Tratava-se de um demônio pouco mais alto e forte que os demais, com o olhar tranquilo, ombros altos e sorriso bonachão – características nada comuns aos seres das profundezas. À medida que avançava, a vermelhidão da pele dele foi-se abrandando, a cauda pontiaguda deixou de existir – e um enorme par de asas reluzentes abriu-se nas costas do capeta. Em verdade, um anjo.
      - Checarion! – surpreendeu-se Lúcifer, o único a reconhecer o outro.

23. O PLANO

     - Pulem! – gritou Margô.
     - Pular? – questionou Baldo, mesmo com os pés ardendo por causa das chamas.
     - Pulem por suas vidas! – berrou novamente a doutora – Todos juntos!
   Foi o que fizeram os três (Rimo junto, por inércia). Claro que, amarrados, não era possível dar grandes saltos. Os pulinhos, no entanto, eram suficientes para aliviar a queimação nos pés – e também fazê-los de certa forma se locomover em bloco. A cada pequeno salto, o grupo deslocava-se em direção à borda da fogueira.
    - Imbecis! Não deixem que eles escapem! – ordenou o Mestre do Mal a um grupo de capetinhas de lanças em punho. O chefão gritou de tal forma eloquente que ficou com o rosto mais vermelho do que já costumava ser.
    Tarde demais. A tática de Margô deu resultado e, depois de um último pulinho, ela, Zé, Baldo e Rimo saltaram das chamas e estatelaram-se no chão, num baque seco e dolorido.
     - Ai!
     Por sorte, Margô e Baldo caíram por cima de Zé, o mais forte do trio, que absorveu o impacto. Com o choque, Rimo conseguiu se desprender das cordas e corajosamente voou em direção aos lanceiros, desviando das lâminas afiadas no momento preciso com rodopios no ar.
     A insistência dos diabinhos em ferir o pássaro deu tempo suficiente para que os outros se livrassem das cordas, frouxas depois de tanta movimentação. Mesmo vendo estrelas, a doutora e os demais imediatamente puseram-se de pé. Não era hora de aparentar sofrimento. Afinal, é disso que o Diabo se alimenta.
     - E agora, Margô? – quis saber Baldo.
     - Vamos completar nossa missão e resgatar a alma de Rui Rico! – respondeu de pronto a ruiva.
     - Vocês só estão se esquecendo de um detalhe – alertou Zé – Entre a gente e a garrafa, há pelo menos cem mil demônios, diabos e capetas!
     Detrás da legião de subalternos, Lúcifer reapareceu de asas abertas e cara de mau. Em uma das mãos, trazia um tridente cujas lâminas reluziam de tão afiadas; na outra, carregava a garrafa com a alma do candidato à presidência do Brasil.
     - Bem lembrado, meu caro bigodudo. Bem lembrado! – tomou a fala o capetão – Esta garrafa é o que vocês querem? Pois venham buscá-la... se conseguirem! Hahahahahahaha!

22. ÍDOLO NACIONAL

    Margô e os outros não sabiam – e, àquela altura, com fogo a arder sob os pés, também não se importavam muito. Mas, na superfície, o tempo andava mais rápido e já estava lá na frente. As eleições presidenciais seriam no dia seguinte.
      E Rui Rico tinha 99% das preferências de voto!
    Durante a campanha, o encantamento sobre o eleitorado só aumentou. Onde quer que o homem aparecesse, na TV, no rádio, no YouTube, no palanque ou no barzinho da esquina, a galera delirava!
    - Um, dois, três... quatro, cinco, mil! Queremos Rui Rico presidente do Brasil! – gritava o coro de simpatizantes do candidato, isto é, todo mundo.
    O estranho, porém, é que ninguém se opunha às propostas do sujeito. E olha que elas eram bem polêmicas.
     Queimar todas as árvores da Amazônia; transformar todas as escolas em centros de tortura; derrubar os hospitais e postos de saúde e erguer no lugar fábricas de enxofre; aumentar os impostos em 666%; ferver os rios e cozinhar todos os peixes; furar todos os canos das redes de água e esgoto só porque é legal; mudar o nome de Brasília para Inférnia; acabar com o voto e instaurar a Monarquia Absolutista do Império Tirano do Brasil; determinar por lei irrevogável que “amor” rime exclusivamente com “dor” em todas as canções e poemas; trancar todos os passarinhos em gaiolas apertadas; e, acima de tudo, expulsar do país todos que discordassem de suas ideias. Estas eram algumas das propostas de Rui Rico, amplamente apoiadas pela população, do pobre ao podre de rico.
     - Ele nem ganhou e já é o melhor presidente do Brasil!
     - Quando assumir vai ser o melhor presidente do mundo!
     - De todos os tempos!
     - Viva!
     Era o que se ouvia nas ruas.
    - Pois é... Já era, não tenho a menor chance. O cara é muito bom – comentou consigo mesma a ainda presidente Tina Dupep, que, sozinha no quarto, à meia-luz, já arrumava as malas para ir embora.

***

     No Inferno, Margô, Baldo e Zé sentiam a sola dos pés arder. O único que ainda estava mais ou menos de boa era Rimo, amarrado na altura da cintura dos amigos, longe das chamas. Por enquanto.
     - Isso daqui não tá legal! – desabafou Baldo.
     - Concordo – respondeu Zé.
     - Calma, gente – pediu Margô – Eu tenho um plano.

21. O CLIMA ESQUENTA

     Dentro de uma garrafa empoeirada, mal acomodada ao pé do trono de ossos do rei do Inferno, nuvens de gases acinzentados contorciam-se entre si – moldando a expressão de um rosto apavorado. Era a alma de Rui Rico, enclausurada. 
     Com um estalo de dedo do chefão, um diabinho muito magro aproximou-se do Mestre do Mal.
     - Pegue a garrafa – foi a ordem que recebeu.
    Em dois segundos, o pobre magricela foi e voltou, trazendo o pedido do chefe em mãos. O Senhor das Trevas apanhou o objeto sem se virar e já começou o discurso.
    - Vocês desceram ao Inferno por causa disso daqui, não??!! – gritou ele, erguendo a garrafa a dois palmos de distância dos narizes de Margô e dos demais amarrados.
    Baldo tentou segurar, mas não se aguentou e deixou explodir uma risada. Margô, Zé e Rimo, mais contidos, estamparam um sorriso de escárnio.
    - Olha, não foi exatamente atrás desta garrafa que viemos. Mas, um gole não seria nada mal – falou Margô.
     Só então o capetão-mor notou o que tinha em mãos: uma garrafa de Coca-Cola.
    - Imbecil!!! – esgoelou-se o Senhor do Mal, instantes antes de atirar o objeto bem no meio dos chifres do assistente esquálido, que foi ao chão na mesma hora. – Tragam-me a garrafa com a alma do candidato! Agora!
    Um outro capetinha, tão magro quanto o primeiro, apressou-se em cumprir  a tarefa. Lúcifer voltou a sorrir ao notar a expressão esfumaçada de Rui Rico distorcer-se de espanto ao se ver nas mãos do ser mais malvado entre todos os malvados.
     - Tá com medinho? Tá com pavorzinho do pai? Hahahahaha! – provocou o capeta, batendo no vidro com a ponta da unha afiada. Em seguida, ele aproximou a garrafa dos próprios olhos arregalados e continuou o falatório – Você ainda sequer experimentou o que é medo de verdade!
     Zé deu um bocejo. Aquele blablablá todo lhe dava sono. Para não dormir em pé, ele rompeu com o mutismo tradicional e provocou:
      - O que você vai fazer, ó supremo Mestre do Mal?
    - Vou fazer você engolir a seco toda esta arrogância, bigodudo asqueroso! – berrou o demônio supremo, sem paciência.
     Em seguida, Lúcifer gritou uma nova ordem.
      - Acendam a fogueira!